sábado, 13 de agosto de 2016

A MORAL PROVISÓRIA DE DESCARTES

«Finalmente, assim como antes de começar a reconstruir a casa que se habita não basta derruba-la, nem preparar os materiais e arquitectos, nem aprendermos nós próprios a arquitectura, nem além disso traçar cuidadosamente o seu plano, pois é necessário também termo-nos prevenido com qualquer outra, onde nos possamos alojar comodamente enquanto se trabalha nela – assim, a fim de não ficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos, e para não deixar de viver, a partir desse momento, o mais felizmente possível, formei para mim próprio uma moral provisória, constituída apenas por três ou quatro máximas, que vos quero expor.
A primeira era obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero, que fossem geralmente aceites ou praticadas pelos mais sensatos daqueles com quem teria de viver. Porque, começando desde esse momento a não contar para nada com as minhas próprias opiniões, pois as queria submeter todas a exame, parecia-me evidente que o melhor que tinha a fazer era seguir as dos mais sensatos.
[…] A segunda máxima consistia em ser o mais firme e resoluto que pudesse nas minhas acções, e não seguir com menor firmeza do que se fossem muito certas as opiniões mais duvidosas, uma vez que as tivesse escolhido, imitando nisto os viajantes, que, perdidos em qualquer floresta, não devem errar vagueando para um lado e para o outro, nem ainda menos parar, mas sim andar sempre o mais a direito possível numa mesma direcção, e não modifica-la, por fracas razões, ainda que de princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha; porque, dessa maneira, embora não cheguem exactamente aonde querem, pelo menos chegarão por fim a qualquer lugar, onde naturalmente estarão melhor que no meio da floresta.
[…] A minha terceira máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, dum modo geral, habituar-me a crer que só os nossos pensamentos estão inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível em relação às cousas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. E esta simples consideração bastava para me impedir, daí por diante, de nada desejar que não pudesse adquirir, e para desse modo me tornar feliz.
[…] Por fim, para remate dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações humanas, com a intenção de escolher a melhor; e, sem desfazer nas dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era continuar com aquela em que de momento me ocupava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e a progredir, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto.»

R. Descartes, Discurso do Método. Terceira parte. Trad., pref. e notas de Newton de Macedo. Lisboa, Sá da Costa Editora, 1984, pp. 20-24.

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