«Finalmente, assim como
antes de começar a reconstruir a casa que se habita não basta derruba-la, nem
preparar os materiais e arquitectos, nem aprendermos nós próprios a
arquitectura, nem além disso traçar cuidadosamente o seu plano, pois é
necessário também termo-nos prevenido com qualquer outra, onde nos possamos
alojar comodamente enquanto se trabalha nela – assim, a fim de não ficar
irresoluto na minha conduta, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus
juízos, e para não deixar de viver, a partir desse momento, o mais felizmente
possível, formei para mim próprio uma moral provisória, constituída apenas por
três ou quatro máximas, que vos quero expor.
A primeira era obedecer
às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião em que
Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância, e conduzindo-me, em tudo
o mais, segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero, que
fossem geralmente aceites ou praticadas pelos mais sensatos daqueles com quem
teria de viver. Porque, começando desde esse momento a não contar para nada com
as minhas próprias opiniões, pois as queria submeter todas a exame, parecia-me
evidente que o melhor que tinha a fazer era seguir as dos mais sensatos.
[…] A segunda máxima
consistia em ser o mais firme e resoluto que pudesse nas minhas acções, e não
seguir com menor firmeza do que se fossem muito certas as opiniões mais
duvidosas, uma vez que as tivesse escolhido, imitando nisto os viajantes, que,
perdidos em qualquer floresta, não devem errar vagueando para um lado e para o
outro, nem ainda menos parar, mas sim andar sempre o mais a direito possível
numa mesma direcção, e não modifica-la, por fracas razões, ainda que de
princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha; porque, dessa maneira,
embora não cheguem exactamente aonde querem, pelo menos chegarão por fim a
qualquer lugar, onde naturalmente estarão melhor que no meio da floresta.
[…] A minha terceira
máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a
fortuna e antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, dum modo
geral, habituar-me a crer que só os nossos pensamentos estão inteiramente em
nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível em relação
às cousas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem sucedidos
é, em relação a nós, absolutamente impossível. E esta simples consideração
bastava para me impedir, daí por diante, de nada desejar que não pudesse
adquirir, e para desse modo me tornar feliz.
[…] Por fim, para
remate dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações humanas,
com a intenção de escolher a melhor; e, sem desfazer nas dos outros, pensei que
o melhor que tinha a fazer era continuar com aquela em que de momento me
ocupava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e a progredir, o
mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha
imposto.»
R. Descartes, Discurso do Método. Terceira parte.
Trad., pref. e notas de Newton de Macedo. Lisboa, Sá da Costa Editora, 1984,
pp. 20-24.
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