segunda-feira, 27 de junho de 2016

O papel da filosofia no ensino secundário

O papel da filosofia no ensino secundário

Desidério Murcho
Que papel exactamente deve a filosofia desempenhar no ensino secundário? Em países filosoficamente muitíssimo desenvolvidos a filosofia não é uma disciplina obrigatória no ensino secundário, como é o caso do Reino Unido, dos Estados Unidos e da Alemanha. Por outro lado, Portugal nunca se distinguiu internacionalmente como produtor de filosofia — mas a presença da filosofia no ensino secundário português tem sido constante. Por isso, o argumento de que sem filosofia no secundário a produção filosófica nacional tenderá a desaparecer é implausível. Contudo, há razões para defender a manutenção, e até o reforço, da filosofia no ensino secundário. São essas razões que iremos apresentar e discutir.
É preciso começar por compreender a situação actual em Portugal. A filosofia é obrigatória para todos os estudantes, nos 10.º e 11.º anos. No 12.º ano é opcional. A situação do 12.º ano mudou há pouco mais de dez anos — no ano lectivo de 1995/1996, ano em que a generalização dos planos curriculares aprovados pelo Decreto-Lei Nº 286/89, de 29 de Agosto, chegou ao 12.º ano. Até essa altura, desde a criação do ano propedêutico em 1977/1978 e, depois, do 12.º ano em 1980/1981, todos os estudantes do 3.º curso (humanidades) eram obrigados a escolher Filosofia, e o exame nacional era obrigatório. Este exame era usado como prova de ingresso na universidade.
Com o ministro David Justino e a revisão curricular aprovada pelo Decreto-Lei N.º 74/2004, de 26 de Março, o exame de Filosofia do 12.º ano foi extinto, pelo que deixou de ser usado como prova de ingresso na universidade, sendo introduzido o exame nacional de Filosofia no 11.º ano. Esta situação reforçava, de facto, a importância da filosofia. Ao contrário do modelo anterior, todos os estudantes tinham de fazer exames nacionais de Filosofia — e não apenas alguns estudantes da área de humanidades. Contudo, a actual equipa ministerial anunciou a extinção dos exames de Filosofia e Português do 11.º ano. A Sociedade Portuguesa de Filosofia e a Associação de Professores de Filosofia manifestaram-se contra esta medida. A Associação de Professores de Português, pelo contrário, aplaudiu-a. Sob pressão do Conselho Nacional de Educação, e contrariando as sociedades e associações relevantes, o ministério decidiu manter os exames de Português, mas eliminar os de Filosofia. E esta é a situação em que nos encontramos agora. Em Julho deste ano será realizado o último exame de Filosofia do 11.º ano — que entretanto, depois de muitas peripécias legislativas, acabou por ser opcional e não obrigatório como estava inicialmente previsto, destinando-se exclusivamente ao acesso ao ensino superior e perdendo o carácter de exame para aprovação na disciplina.
Quando a disciplina de Filosofia deixou de ser obrigatória para os estudantes do 12.º ano de humanidades, desapareceram quase todas as turmas desta disciplina. Anteriormente, havia inúmeras turmas de Filosofia do 12.º ano em quase todas as escolas. Actualmente, poucas são as escolas que chegam a ter uma turma de Filosofia do 12.º ano, muitas vezes com um número exíguo de estudantes. Os estudantes preferem claramente outras disciplinas, o que merece em si alguma reflexão. Não podemos saber exactamente o que motiva as suas escolhas. O actual programa pode ter um papel causal importante, pois trata-se de uma lista de obras de leitura integral, o que poderá ter persuadido muitos cursos superiores a abdicar do exame de Filosofia do 12.º ano, por não verem a relevância formativa de tal disciplina para os seus candidatos. Seja qual for a razão, se fizermos um mau trabalho no ensino da Filosofia no 10.º e 11.º anos, cada vez menos estudantes irão ver a importância desta disciplina para a sua formação, preterindo-a no 12.º ano a favor de outras.
Dada esta situação, a reintrodução do exame de Filosofia no 12.º ano não resolve o problema da falta de estudantes. A menos que simultaneamente se torne a Filosofia do 12.º ano obrigatória para pelo menos alguns cursos, como antes de 1996 (ou para todos, hipótese que não faria grande sentido porque a disciplina pertence à formação específica). Contudo, mesmo que o ministério optasse por esta solução, subsistiria um problema do fundo: o actual programa de Filosofia do 12.º ano não é comercialmente viável. Poucas ou nenhumas editoras estarão dispostas a publicar materiais de excelência para estudantes e professores. O que tenderá, portanto, a degradar a qualidade da disciplina, não eliminando por isso o risco constante da sua simples erradicação do plano nacional de estudos.
O programa não é comercialmente viável porque propõe uma lista de dezanove obras filosóficas (substituindo e revendo as anteriores vinte e duas), das quais o professor escolhe quaisquer três1. Isto significa que, com algumas excepções apenas, cada uma das obras é efectivamente estudada por um número tão reduzido de estudantes que não é comercialmente viável escrever manuais ou edições críticas destas obras — não é sequer comercialmente viável publicar muitas destas obras. O resultado deste estado de coisas é a degradação do ensino da disciplina. Sem bons livros introdutórios sobre estas obras, bons comentadores e boas edições críticas, estudantes e professores dificilmente poderão fazer um trabalho de qualidade, o que desprestigia a disciplina. Esta solução não é, pois a mais adequada.
Acresce que a filosofia é uma área do conhecimento central para quaisquer áreas, e não apenas para as humanidades. Para usar uma expressão tonta muito em voga, isso seria uma visão muitíssimo redutora da natureza da disciplina. A filosofia é central não apenas para estudantes de humanidades, mas também para estudantes de artes e de ciências. Faz todo o sentido, por isso, que os estudantes sejam avaliados a nível nacional no final do 11.º ano. Acresce que o programa de Filosofia dos 10.º e 11.º anos não é apenas uma lista de obras, apesar de permitir, evidentemente (e dever incluir), o recurso a obras filosóficas fundamentais.
Por que razão o actual ministério eliminou o exame de Filosofia do 11.º ano? O ministério nunca respondeu a esta pergunta, insistentemente feita tanto pela Associação de Professores de Filosofia como pela Sociedade Portuguesa de Filosofia. Será que sem exame nacional no 11.º ano a filosofia fica em risco de desaparecer do ensino secundário, como tem sido ventilado na comunicação social? Não há razões para o pensar. Contudo, será mais difícil fazer um trabalho de qualidade.
Em primeiro lugar, porque os próprios estudantes desvalorizam uma disciplina que não é sujeita a exame quando outras o são. É quase como se a disciplina fosse uma espécie de recreio algo inconsequente.
Em segundo lugar, porque sem exames nacionais muitos professores não cumprem pura e simplesmente o programa. Este aspecto é denunciado por professores experientes2 e conhecedores da realidade (apesar de não haver estudos científicos sobre este aspecto). Mas, mesmo sem estudos, basta ler alguns dos manuais existentes para se verificar que estão muito mais em harmonia com o programa que esteve em vigor até 2001 do que com o novo programa que entrou nesse ano em vigor3. Sem exames, não há qualquer incentivo para cumprir os programas. Pessoalmente, nada tenho contra a ideia de liberalizar completamente o ensino da filosofia, eliminando o programa nacional; cada escola poderia ser responsável por criar o seu próprio programa de filosofia, pressupondo uma formação sólida dos professores e a existência de materiais didácticos de qualidade. Mas considero que ou fazemos isso explicitamente, e em todas as disciplinas, ou corremos o sério risco de a Filosofia ser encarada como a disciplina de excepção onde reina o vale-tudo e onde qualquer seriedade escolar é uma ilusão ingénua.
Em terceiro lugar, porque quando há exames de Filosofia bem feitos, cientificamente rigorosos e didacticamente adequados, introduz-se um padrão nacional de qualidade que os professores procuram seguir. E isto é muito importante, pois é um passo de gigante na dignificação da disciplina4.
Em quarto lugar, porque a existência de exames estimula o aparecimento de mais livros de filosofia. Dado que professores e estudantes procuram informar-se melhor, torna-se comercialmente viável publicar mais livros introdutórios, traduções de clássicos, comentários e edições críticas. Este factor é mais importante do que se possa pensar porque o nosso atraso editorial em filosofia é imenso. Ao passo que noutros países a filosofia é facilmente acessível em livros de altíssima qualidade, escritos na língua desses países, em Portugal estudantes e professores que queiram, por exemplo, conhecer melhor a filosofia de Husserl ou de Bernard Williams, não têm praticamente livros em português que os ajudem.
Esta é a situação actual e as razões para defender a reintrodução do exame nacional de Filosofia no 11.º ano em filosofia, dado que o seu carácter não é menos estruturante que o das disciplinas para as quais aquele é exigido. Resta saber que razões há para, de todo em todo, manter a Filosofia no ensino secundário, em vez de a eliminar ou substituir por outra disciplina.
A este respeito, temos assistido a uma saudável reacção pública. Inúmeras figuras públicas manifestaram-se contra a eliminação do exame de Filosofia e consequentemente contra a sua desvalorização. A filosofia é correctamente encarada, publicamente, como uma disciplina central do conhecimento, que não faz sentido eliminar. Por vezes, contudo, os argumentos usados não são os melhores. Argumenta-se como se a eliminação da filosofia no ensino secundário fosse a mesma coisa do que a eliminação da filosofia da vida cultural nacional. Ora, uma coisa não implica a outra. Como foi referido, em inúmeros países nos quais a filosofia não existe ou não é obrigatória no ensino secundário, a filosofia desempenha um papel de relevo na vida cultural — e trata-se de países cuja produção filosófica influencia a filosofia a nível mundial, como é o caso dos Estados Unidos, do Reino Unido ou da Alemanha.
Há dois argumentos fundamentais interligados para defender a manutenção da filosofia para todos os estudantes, no ensino secundário.
O primeiro é o tipo de competências cognitivas asseguradas pela filosofia. Em países com democracias mais firmemente implantadas no tecido social, e com níveis culturais globais mais elevados, a atitude existente perante a cultura e a ciência, as artes e as religiões, é naturalmente mais crítica e menos passiva. A população tende a encarar as coisas com maior sentido crítico, e tem alguma ideia de como isso se faz com seriedade. Entre nós, contudo, vivemos um falso dilema no qual ou há respostas científicas acabadas que permitem a seriedade das posições e decisões públicas, ou o problema está em aberto e entramos na pura subjectividade opinativa, algo aleatória e irracional. Este tipo de clima mental não permite o desenvolvimento de um pensamento público sério e responsável, crítico e racional, que nos permita enfrentar os desafios que temos de resolver como sociedade. Ou há resposta para esses desafios nos livros estrangeiros, ou ficamos como que atarantados porque não sabemos pensar racionalmente quando não há respostas claras. A filosofia ajuda-nos, precisamente, a fazer isso. Quem for capaz de pensar com alguma clareza sobre o problema do livre-arbítrio, por exemplo (um problema milenar que continua em aberto, como a generalidade dos problemas da filosofia), saberá pensar com muito mais clareza sobre os problemas que precisamos de resolver enquanto cidadãos. Por outras palavras, a filosofia ensina a pensar quando o pensamento é arriscado e quando não há respostas. Ensina-nos a procurar respostas. Ensina-nos a investigar. É por esta razão que a filosofia faz muito mais falta no ensino secundário português do que no inglês ou no alemão — porque a sociedade portuguesa sempre teve uma enorme dificuldade em inovar. Ironicamente, numa altura em que o ensino da filosofia no secundário inglês se reforça, com exames nacionais exemplares, o ministério português procura desvalorizar a filosofia no nosso país.
O segundo argumento é de carácter pragmático e de racionalização de recursos. Temos, nas escolas secundárias, um corpo docente qualificado quer académica quer profissionalmente. Todos os professores de Filosofia são licenciados em filosofia (muitos têm mestrados e, alguns, doutoramentos), além de terem uma formação didáctica no campo do ensino da filosofia. Se a filosofia for eliminada do ensino secundário, estes professores terão de passar a leccionar outra disciplina para a qual não têm realmente qualificações académicas nem didácticas, pois legalmente o ministério não pode despedir os professores. Ora, um dos factores fundamentais da excelência do ensino é a qualificação académica e profissional dos professores. Professores de matemática com fracas qualificações académicas em matemática e respectiva didáctica serão mais provavelmente maus professores, ainda que tenham boas qualificações académicas e profissionais noutras áreas, como na engenharia. Por isso, nenhum ministério que tenha realmente vontade de estimular a excelência do ensino poderá querer pôr os professores de filosofia a leccionar outra disciplina qualquer, quando poderiam leccionar a disciplina que melhor dominam. Além disso, tem sido feito um esforço notável de formação contínua dos professores de filosofia, actualizando as suas práticas, conhecimentos e referências bibliográficas. Este esforço custou ao estado milhões de euros ao longo dos últimos anos. Agora que se começa claramente a ver o efeito deste esforço, sendo cada vez maior o número de professores de filosofia actualizados, que têm todas as condições para leccionar a sua disciplina de acordo com os mais exigentes padrões de qualidade, seria irracional reconverter estes profissionais para leccionar uma aberração escolar qualquer, que muito provavelmente será uma disciplina sem qualquer dignidade académica, cujos conteúdos, metodologias e bibliografias serão de contornos vagos e pantanosos.
Conjuntamente, estas são duas razões fortes para estimular o estudo rigoroso da filosofia no ensino secundário. Um ministério seriamente apostado na excelência e no valor social do ensino não poderá desvalorizá-lo5.
Desidério Murcho

Notas

  1. Exigindo-se que as três obras tenham unidade temática, o que torna o programa incongruente. Cf. "O Programa do 12.º Ano", in Renovar o Ensino da Filosofia, org. por Desidério Murcho (Lisboa: Gradiva, 2003).
  2. Cf. O artigo de Teresa Ximenez in Para a Renovação do Ensino da Filosofia, org. por António Paulo Costa (Lisboa: Plátano, 2006).
  3. Cf. "A Especificidade da Filosofia", de Desidério Murcho (Crítica, 30 de Outubro de 2003).
  4. Isto aplica-se não apenas à filosofia, obviamente, mas a todas as disciplinas. Cf. "Para Que Serve o Ensino?", de Desidério Murcho (Crítica, 2 de Fevereiro de 2007).
  5. Agradeço a Luís Gottschalk a ajuda relativa a alguns factos históricos do ensino da filosofia, assim como a Artur Polónio pelas sugestões e comentários. Uma versão desta comunicação foi apresentada no Departamento de Filosofia da Universidade do Porto no dia 23 de Fevereiro de 2007. Agradeço o convite de Sofia Miguens, assim como os comentários e a viva e simpática discussão ocorrida, nomeadamente com Ana Sofia, José Meirinhos e Carlos Mauro.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

segunda-feira, 13 de junho de 2016

As Vantagens do Pessimismo.

«     A princípio, conta-nos o velho mito, os únicos mortais da Terra eram homens, a quem Prometeu trouxe fogo, desobedecendo a Zeus. Por vingança, Zeus ordenou a criação da primeira mulher, que foi dada em casamento ao irmão de Prometeu. O nome dela era Pandora - a que dá tudo. E como prenda de casamento Zeus deu-lhe uma caixa, instruindo-a para nunca a abrir. Cedendo finalmente à sua curiosidade, ela abriu a caixa, libertando no mundo morte, doença, desespero, maldade, velhice, ódio, violência, guerra e todos os outros males que conhecemos. Pandora fechou imediatamente a caixa, e ficou lá dentro uma prenda - a prenda da esperança: o único remédio, mas também o flagelo final.

     A minha preocupação, em primeiro lugar, é com certas falácias que parecem justificar a esperança, ou pelo menos tornar o desapontamento suportável. Os meus exemplos vêm de muitas áreas, mas partilham uma característica comum, que é mostrarem, no cerne da visão inescrupulosa do optimista, um erro tão ofuscantemente óbvio que só uma pessoa controlada pela auto-ilusão poderia ignorá-lo. É contra essa auto-ilusão que se dirige o pessimismo. Um estudo dos usos do pessimismo revelará uma característica muito interessante da natureza humana, que é a de erros óbvios  serem os mais difíceis de rectificar. Podem envolver erros de raciocínio; mas a sua causa é mais profunda  do que a razão, em necessidades emocionais que se defenderão com todas as armas para afirmar o conforto  das suas ilusões facilmente conquistadas, em vez de abrir mão dele. Um dos meus propósitos é acompanhar essas necessidades emocionais até à sua origem pré-histórica e mostrar que a civilização é sempre ameaçada de baixo por padrões de crença e de emoção que outrora podem ter sido úteis para outras espécies mas já não o são. » 

Roger Scruton, As Vantagens do Pessimismo e o perigo da falsa esperança. Tradução José António Freitas e Silva. Lisboa, Quetzal Editores, 2011, pp. 9-10